quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Ah, como eu queria ser criança

Um bebê está adormecido dentro de um carrinho de passeio, à sombra daquele toldo protetor. Há dois paninhos fofos servindo de apoio para seus bracinhos e outro apoiando seu pescocinho. Uma das mãozinhas macias descansa sobre a barriguinha do bebê que se move lentamente pela respiração. Todos os músculos estão visivelmente relaxados e seus olhinhos e bocas selados de tal forma que aquela imagem estática parece irreal. Pelo menos noventa por cento das pessoas que se viram diante de um bebê mergulhado em tal serenidade soltaram um suspiro cheio de inveja e pensaram consigo mesmo: “Ah, como eu queria ser criança”.


A infância é lembrada pelos adultos como uma época mágica e livre de problemas quaisquer. Afinal, crianças não têm noção dos perigos da vida. Não sabem sequer que a vida é algo que está em jogo, constantemente. Aquele bebê adormecido no carrinho carrega em si toda a paz do mundo porque ignora a maldade existente nele.


Em defesa das crianças, venho lembrar a todos que ser criança não é assim tão fácil.


A criança vive com um pé na fantasia e outro na realidade. Enquanto nós espantamos nossos medos noturnos trancando a porta com a tetra chave, o pequeno tem que lidar com a certeza da presença dos seres mais horríveis debaixo da própria cama. O pai cheio de insensibilidade logo diz “monstro não existe”, fecha a porta e vai dormir. Não percebe, este pai, que monstro e fantasma são seres tão ameaçadores como qualquer bandido dessa nossa dimensão palpável. E justamente por serem fantásticos, podem se esconder em qualquer sombra.


Então a criança mantém os olhos arregalados, mesmo no escuro que a ela foi imposto, sempre alerta. Ela tenta lidar com a presença do perigo iminente, estremecendo dos cabelos às pontas do pé cada vez que um vento sopra e um estalo da noite acontece. Quando o medo se torna insuportável ela decide recorrer ao porto seguro do leito dos pais. Só de se imaginar entre as duas pessoas mais poderosas e amadas do seu universo, a criança já se enche de acalentosa esperança.


Ao colocar os pezinhos no chão, seu corpinho recebe doses e mais doses de adrenalina. Mesmo que o quarto dos pais seja logo ao lado, não é nada fácil se expor à solidão do corredor que comunica o seu quartinho assombrado a uma casa muito maior e mais cheia de perigos. Nas pontas do pé para não acordar nenhum fantasma, a criança chega, finalmente, ao quarto dos pais. A tensão continua e ela permanece ali, à beira da cama, sem saber como abordar seus salvadores. Será que ela deveria deitar ali mesmo no cantinho da cama, sem barulho? Será que deveria colocar a mãozinha no ombro descoberto da mãe? Será? Será? E indiferente a todo esse sofrimento, os pais acordam e ah...quanta injustiça não dizem àquele pequeno aventureiro.


Lembrar da infância com os olhos do adulto não é, de fato, lembrar da infância.




quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Ciranda para minha bonequinha



Mandei ladrilhar essa rua tão comprida
Com pedrinhas de brilhante só pra você poder passar.
E pedi que as pedrinhas iluminassem seu caminho
Sem o brilho-brilho da minha estrelinha ofuscar.

Limpei a tinta preta da cara do boi
O bicho-papão espantei para as suas noites não perturbar.
E se eles de dia aparecerem
O caçador estará à pronta a te guardar.

Nem lobo mau nem bruxa malvada
Nem nada que te possa magoar
Existirá nessa sua ciranda
Que muitas voltas há de dar.

Bonequinha quando nasceu
Pôs a mão no meu coração
Vou fazer com que sua vida
Seja sempre essa canção.


ilustração: Adolie Day

Minha boneca completa sua quinta primavera. Por ela sinto tudo o que as palavras não conseguem dizer.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

A Rainha do Lar


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Quando era criança e tentava me projetar no futuro, enxergava uma mulher independente e muito bem sucedida. Marido e filhos (ou filhos e marido) não eram fatores constantes nos meus sonhos de mulher adulta. Fruto de uma geração de feministas, eu era muito bem consciente do meu potencial e dos meus direitos.

Aos dezessete anos arregacei as mangas e fui construir o meu império. Saia do colégio e ia para o trabalho com a disposição de uma formiga operária. Eu estava no caminho certo para a mulher adulta que eu pensava em ser.

Os anos foram passando e o salto alto começou a incomodar. Quando a barriga cresceu e meu corpo me obrigou a lembrar da minha condição de mulher, percebi que o percurso para a antiga projeção de mim mesma não seria tão fácil.

Abracei a maternidade de corpo e alma e automaticamente me vi sonhando em ser dona de casa, em esquecer a carteira de trabalho no fundo da gaveta para sempre e me dedicar ao meu bebê sem restrições de tempo.

E porque sou uma mulher de sorte, casei, mudei de cidade e por força das circunstâncias me vi em casa tempo integral, com uma filha linda para criar, uma casa para cuidar e um marido para amar. Plano-Amélia concretizado.

Mas os dias passavam sem que a pilha de roupas para passar acabasse, sem que a pia esvaziasse, sem que a fome da família se satisfizesse. Humana e insatisfeita por natureza, comecei a sentir saudades do trabalho, em ter meu próprio dinheiro... e o horror às tarefas domésticas foi crescendo. Afinal, não há trabalho mais ingrato no mundo, certo?

Errado.

Antes de ir para o time das feministas outra vez, parei para pensar se o trabalho doméstico é realmente “invisível”, como dizem por aí, por não ser reconhecido. Tudo bem, o marido pode até não perceber que você caprichou na faxina, o filho pode até não ter piedade quando chega da escola e bagunça tudo. Você pode ficar com a unha lascada e sem salário. Mas há, sim, senhoras e senhores, dignidade em cuidar do lar.

Afinal, o lar não é uma casa qualquer. O lar é onde moram as pessoas que você mais ama. Amor implica cuidado. O lar é onde sua família se (re)unirá, todos os dias, para ser família. A casa que não tem comida nem aconchego não congrega, manda cada um para um lado diferente.

Há, sim, um certo gostinho, em ser a única que sabe onde todas as coisas estão, o que precisa ser comprado e o que dura até semana que vem. Ter o controle total da casa, domesticá-la, não é tarefa fácil. Se você conseguiu, não se sinta explorada porque o marido não sabe onde fica o papel higiênico. Sinta-se orgulhosa.

Porque é você quem vai olhar para trás na velhice e ter a certeza, mesmo que seja a única em tê-la, de que foi a arquiteta e o peão-de-obra daquele império mais que especial: a sua família.