quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Era uma vez...

Todas as noites me deito ao lado dela e leio um livro. Histórias diferentes ou repetidas sempre foram a porta de entrada para o mundo dos sonhos da minha filha. Ao ler, eu esperava que todas as fantasias das histórias saltassem do livro e viessem passar a noite ao lado dela, inventando.

E eu que imaginei que seus olhos grandes e azuis observavam as ilustrações, enganei-me: ela se encantava é pelas palavras.

Aprendeu desde muito cedo a desenhar todas as letras, e de uns tempos pra cá, começou a articulá-las em palavras, e as palavras em frases. Em momentos que me emocionam ela segura o lápis e escreve com facilidade, desprezando a importância desta conquista. Muito raramente levanta a cabeça e busca em uma nuvem de pensamento a grafia daquilo que coça na sua garganta.

Acredito fortemente que quando ela escreve, um daqueles seres fantásticos dos livros senta em seu ombro e juntos, fazem mágica no papel que também é porta de entrada (ou de saída) do mundo dos sonhos.




Ilustração: Ana Oliveira.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Ciclo da boa ação

Quinta-feira era o pior dia da minha semana. Saia de casa meio dia para só retornar às onze horas da noite. Na verdade, trabalhava ‘só’ até as vinte e duas horas, mas tinha que ficar esperando um ônibus para voltar a casa. Não mal digo o tal ônibus porque, apesar da sua demora e suas goteiras e seu mau cheiro e seus bancos mofados, ele era meu único meio de condução e, melhor: condução de volta para minha casa e para minha família. Sempre o adentrava com um sorriso estampado num rosto cansado depois da longa jornada.

Certo dia, após terminada a minha oitava aula, fui à sala dos professores e arrumei minha parafernália para ir embora. Como ainda faltava meia hora para minha carruagem de ferrugem aparecer, resolvi dar uma olhada nos e-mails cuja conta vive ameaçando uma explosão com a imagem de uma dinamite no canto da tela.

Após alguns alertas sobre o perigo da coca-cola, fotos de crianças seqüestradas e ppts para ter um dia lindo, ouvi o ranger da geringonça chegando do lado de fora. Peguei minha bolsa, diários, provas e livros que já estavam a postos e dirigi-me alegre para a rua. Chegando lá encontrei nada além de um cachorro magro e pulguento perambulando pela noite. O ônibus, magoado pelos meus comentários a respeito de seu estado, rebelou-se e foi embora sem mim.

Antes mesmo que eu pudesse buscar no fundo da memória as palavras de mais baixo calão para expressar a minha fúria, avistei um outro ônibus de farol ligado do outro lado da praça que existe em frente à escola. Corri com toda a energia que eu nem sabia que tinha, deixando alguns papéis escaparem e voarem pelos ares, dando vida àquela praça mórbida. Para minha sorte, aquele ônibus ia para a minha cidade e eu não teria que fazer companhia ao cão sarnento da praça durante aquela noite.

"Obrigada Deus, por não deixar uma filha em abando..." Interrompi minha prece de gratidão com a súbita e aterrorizante lembrança de que não tinha sequer um centavo para pagar a passagem de míseros 2 reais e 40 centavos (que naquela circunstância assumiram um valor inestimável). Joguei minhas tralhas ao chão e cai em desespero frente ao motorista do ônibus, que não se sensibilizou com minhas bochechas vermelhas da corrida e meus trajes sujos de giz. Foi então que...

Foi então que ouvi um senhor dizendo que pagaria a minha passagem. Juntei rapidamente meus pertences espalhados e corri para dentro do ônibus. Só depois de acomodados (eu e minhas coisas) olhei para o homem para agradecê-lo. Ele era uma pessoa de idade indefinida.Vestia uma camisa bem passada por dentro de uma calça de cós alto que acentuava sua magreza, com cinto, fivela e uma botina suja de terra. Segurava um chapéu de palha na mão e tirou de dentro do bolso um bolo magro de notas gastas que pareciam estar guardadas lá há uma eternidade. Passei a viagem toda agradecendo ao bom senhor por ter salvado minha noite.

Meia hora depois, ao descermos na rodoviária, insisti que ele me acompanhasse até minha casa que ficava a apenas alguns quarteirões dali. Notando sua resistência, pedi, então, seu endereço para que eu pudesse levar o dinheiro até sua casa no dia seguinte. Foi então que ele me disse que, como pagamento, eu deveria fazer o mesmo quando visse uma outra pessoa em apuros: ajudá-la.

Pensei nas suas palavras ao caminhar até minha casa, e também ao deitar na minha cama, e novamente ao levantar dela.

Desde então, sempre que posso, ofereço caronas a qualquer conhecido que encontro andando pela rua, e ainda não sinto que minha dívida com aquele senhor de botinas sujas e rugas de sol esteja quitada. Se, naquela noite, ele tivesse aceitado caminhar comigo até minha casa para que eu o pagasse, sua boa ação teria terminado naquele mesmo instante. Estaríamos quites e nunca mais pensaria no ocorrido. Mas ao me encarregar de pagar a ajuda ajudando uma outra pessoa, ele deu início a um ciclo da boa ação. E ao ouvir o agradecimento das pessoas que ajudo, digo a elas que façam o mesmo por outros.

Imagino que neste momento, em algum lugar bem longe dessas minas gerais, alguém, em retribuição a uma ajuda não-paga, esteja oferecendo uma carona a uma professora em apuros que acabou de perder o ônibus.



sábado, 17 de outubro de 2009

Os cinco sentidos e a saudade

Na hora da despedida a gente sabe que dali a alguns dias vamos nos rever e que neste meio tempo ambos estaremos muito bem onde estivermos. A gente sabe que não é para sempre.

E mesmo quando for para sempre, a gente deveria saber que o que vale são as lembranças dos momentos juntos, e que essas lembranças são eternas e imortais.

É muito óbvio não sofrer com despedidas, mesmo as definitivas. Afinal, já sabemos que estamos aqui só de passagem e que mais cedo ou mais tarde todo mundo tem que partir de qualquer forma. E apesar de saber de tudo isso, ainda não aprendemos a despedir sem sofrimento.

É certo que o valor das relações não estão nestes nossos corpos. Um corpo perece enquanto uma amizade ou um amor podem durar para além de uma vida. Contudo, também é certo que para conhecer um alguém dependemos dos cinco sentidos que o nosso corpo carrega. O que são relações senão toques, cheiros, sabores, sons e imagens? Não à toa pegamos um objeto nas mãos quando queremos entendê-lo. Não por puro deleite cheiramos uma flor, mas o fazemos para compreendê-la. Como poderíamos conhecer uma flor apenas na idéia?

Portanto, apesar de frágil e limitado, dou ao corpo os créditos pela construção das amizades e amores. E acredito que é por isso que ainda não aprendemos a despedir. Não me basta saber que estão todos bem, longe de mim. Sinto falta das sardas da minha mãe, do cheiro de louro no cabelo da minha avó, do calor do abraço do meu amor. Sinto falta de todas essas coisas que partem da carne e que estão longe de ser superficialidades nas relações humanas.


quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Daydreamer

Para uma mente criativa o tédio é um desconhecido. Seja durante um engarrafamento, na sala de espera do médico ou em uma viagem de ônibus: se a circunstância lhe empurra goela abaixo um momento ocioso, basta ativar a imaginação e se divertir.


Quem nunca passou horas pensando o que fazer com o prêmio da mega sena, por exemplo? Essa talvez seja a fantasia mais deliciosa e, portanto, mais comum nas mentes por aí. A gente se entrega tanto a ela que o coração passa a bater mais rápido. “E-se-eu-ganhasse-MILHÕES-agora?” Ah... faríamos viagens, plásticas, compras e mais compras. Depois daríamos uns agrados para nossos irmãos e pais, mas só para eles! Senão não sobraria nada para as nossas extravagâncias. E quando a realidade bate na porta da nossa imaginação, empobrecemos tudo outra vez. Quanto desgosto.


Outra coisa que eu adoro pensar é se o teletransporte existisse. E depois de me animar muito com a idéia de poder estar em Paris neste exato minuto e depois, num estalo de dedos, poder ir dar um abraço na minha mãe, cheguei à conclusão de que o teletransporte causaria problemas demais. Imaginem os ladrões se teletransportando das prisões para dentro das nossas casas, os alunos para fora das nossas salas? Imagina qual seria o congestionamento de pessoas no quarto do Brad Pitt? Como controlaríamos o fluxo de pessoas nos shows com ingressos esgotados? Aliás, pensem que cantor conseguiria fazer um show se as fãs ensandecidas pudessem se teletransportar para cima do palco. Definitivamente, não daria muito certo.


Bom, se eu abandono o teletransporte então posso escolher um outro super poder para mim. Comer o que quiser sem nunca engordar e plantar árvore que dá dinheiro em vez de fruta já estão batidos demais. Então vamos lá, criatividade, manda uma idéia nova para mim.


Sei que não tem muita utilidade mas, a título de curiosidade, gostaria de poder ouvir tudo o que já foi dito sobre mim. Desde que eu era apenas uma idéia na cabeça dos meus pais, até o comentário dos meus professores, alunos, colegas, desconhecidos, amigos e inimigos. Fico imaginando como eu posso ter sido assunto nas casas de pessoas que eu nem mesmo conheço. “Sabe aquela menina, amiga de fulano? Pois é. Ta grávida!” Ou então me ouvir na boca de um alguém que me notou na rua e comentou com um amigo sem que eu sequer percebesse. Seria como ver todas as minhas ocorrências num Google mágico da vida. Com isso eu não pretenderia ver quem foi falso ou não ao falar mal de mim nas minhas costas. Mas acredito que só de ver o número dessas ocorrências eu e minha amiga anã chamada auto-estima ficaríamos um tanto surpresas e dificilmente nos sentiríamos insignificantes outra vez.


Legal também seria ter um panorama de todo o trajeto que já percorremos. Como se deixássemos um rastro por onde andássemos e pudéssemos ver num mapa-múndi toda a linha da nossa vida, do nascimento até o dia de hoje. Quantos nós a rotina já não causou, penso. E, comparando com o rastro do nosso grande amor, por exemplo, poderíamos ver quantas vezes estivemos um ao lado do outro sem nos notar, até o dia em que as nossas linhas finalmente passam pelo mesmo ponto.


E se nós pudéssemos calcular quantos quilômetros já andamos, desde os primeiros passinhos até hoje? Será que daria para dar a volta ao mundo? Será que já daria para chegar na lua?


Ah, na lua, sim, eu já cheguei.


* Ilustração de Ana Oliveira

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Matryoshka

Tudo era bem fácil quando eu só precisava ser filha. Eu e minha mãe nos dávamos muito bem e éramos grandes companheiras. Mais que isso, éramos melhores amigas e inseparáveis. Mas aí veio o primeiro namorado que tirou sabe-se lá de onde um eu-namoradeiro, rebelde e sem juízo que vivia em pé de guerra com a filha que eu adorava ser. Enquanto uma queria ir para as baladas a outra queria ficar bem aconchegada no ninho materno. E se duas de mim já me deixavam louca, imagina quando as outras vieram?

Na mesa de cirurgia a obstetra tirou um bebê e uma mãe de dentro de mim. Essa tal mãe simpatizava com aquela antiga filha, mas era um pouco displicente com a namoradeira. Pra ser bem sincera, essa mãe era um bocado egoísta: não gostava que eu desse atenção para as outras partes de mim. E durante a licença maternidade eu e a nova mãe que passei a ser nos demos muito bem. Mas com o tempo eu tive que reatar a amizade com a namoradeira e a filha. E te digo que não foi nem um pouco fácil. A mãe sofreu demais, coitada. Mas a vida continuava e não dava mais para ser só uma.

Corajoso foi o marido, que ainda conseguiu pintar uma esposa no meio dessa turma toda. E com a esposa ainda apareceu a dona de casa, rainha do lar, que nas horas vagas é professora.

Tantas pessoas dentro de mim acabam me deixando um tanto confusa. Às vezes eu me troco: sou filha quando devia ser esposa, sou mãe quando devia ser professora... é uma bagunça danada. Quantas vezes não me peguei na frente de quarenta alunos, com outros olhos, vendo-me com estranheza? Quem era aquela ali?

No tira e põe de tantas máscaras é fácil ir me esquecendo. É claro que todas essas mulheres também são autênticas e são parte de mim. Mas há um eu que só eu mesma conheço, aquela última boneca matryoshka, aquele miolo íntimo que sustenta todas as outras faces de mim mesma. E é preciso muito jogo de cintura para não se perder para sempre.