quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Partida às avessas

O que venho relatar são apenas impressões pessoais, pensamentos que vibram na minha pele, agora tão sensível. Antes de compartilhar o que até este momento pertencia só a mim, gostaria de deixar claro que não se trata de nenhum apelo a esta ou aquela religião. Sequer pretendo fazer referência a credos, portanto que fique minha experiência registrada como uma anedota, nada mais. 

O ano que se esgota começou com a dolorosa partida do meu avô. Homem gigante, de corpo e alma. Só dois pés número 46 poderiam sustentar em equilíbrio tanta beleza de ser humano. Sua morte foi triste, mas sem revoltas. Mais ou menos como é despedir-se da infância, imagino. A gente sabe que é hora, a gente sabe que o que passou ficará para sempre tatuado em nossa existência, e a gente pode até não querer, mas acaba prestando nossas reverências à majestosa mãe natureza. Era a hora dele. Teve uma vida bonita, partiu sem sofrimento. 

Ainda que estivesse convencida da precisão do destino, era triste dizer adeus (ou seria a Deus?). Durante o velório as lágrimas caíam ansiosas, conscientes de que eram a última manifestação física daquele amor. Em certo momento, um grupo de pessoas se aproximou para uma oração e eles contaram, com a dose de alegria que convinha para a ocasião, que meu avô estava sendo recebido com grande festa nos céus. Enquanto nós chorávamos por aqui, os do lado de lá comemoravam o fim da longa espera. Aquela imagem me trouxe calma inexplicável. Achei que era melhor encurtar as despedidas para que ele pudesse aproveitar a festa de chegada. 

Grávida pela segunda vez, venho sonhando constantemente com meu avô. Inevitável não me lembrar daquele fim que também era começo.  E com isso me pego pensando se, enquanto carinhosamente forro as gavetas do armário que será do meu filho, lá nos céus as pessoas estão em luto, chorando suas lágrimas de despedida. Então mentalizo, desejando que meus pensamentos sejam transcendentais, para que todos do lado de lá escutem: Filho, serei sua mãe e desejo muito a sua chegada. Você terá uma irmã e um pai especiais que também já te amam muito. Estamos todos te esperando com alegria e estaremos reunidos quando você vier. Tudo está sendo preparado para que você se adapte por aqui e para que sua trajetória não seja apenas confortável, mas maravilhosa. Não tenha medo. A vida também é boa. E será. 


Mais sobre meu avô: AQUI
Mais sobre o segundo filho: AQUI

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Sô-lidariedade

Há quase um ano venho ensaiando um texto e, apesar dos meus esforços, das palavras que procuro encontro apenas alguns rumores. Geralmente tudo o que me toca, de uma forma ou de outra, vira texto. Seja uma postagem apaixonada no blog, uma carta saudosista ou um email de desabafo, toda emoção quase sempre fica registrada.

Dia 23 de dezembro de 2010 passei por uma dessas emoções avassaladoras, daquelas que são grandes demais e necessitam desesperadamente de serem diluídas em versos. A filha da minha grande amiga era diagnosticada com câncer. Sei que, para quem apenas lê estas linhas, a frase já é impactante o suficiente. Nenhuma criança no mundo deveria sofrer, nem por um joelho ralado, que dirá por uma doença tão terrível.  Ainda assim, gostaria de insistir que não é qualquer criança, nem qualquer amiga. 

Nossa amizade nasceu espontaneamente, num cruzar de ruas e de vidas. Nossos laços não parecem ter sido construídos ao longo do tempo, mas, sim, instantaneamente reconhecidos. A semelhança de nossas trajetórias garantiu-nos um bem querer gratuito, como se uma visse na outra um pouco de si. 

Obviamente todo o carinho foi transferido aos nossos filhos. Compartilhamos problemas familiares, escolares, brinquedos, comida, festas, febres e conquistas. Como poderia eu, ficar imune àquela notícia horrível? Não era apenas uma criança, era a criança tão querida e tão próxima de mim.
               
Desde então venho acompanhando a luta da pequena grande guerreira, que sequer desconfia da coragem que tem. Pude quebrar muitos mitos com relação ao câncer, apesar de acreditar que ele continua sendo um bicho de sete cabeças. Sofia vem tirando de letra, com seu amigo do peito e uma mãe-muralha ao lado. Se naquele primeiro momento o texto que arranhava minha garganta era cheio de amargura, depois foi aparecendo outro cheio de orgulho. Orgulho da pequena e da grande.
                 
Volta e meia aparece de novo a vontade de chorar as mágoas, mas que direito eu tenho? Que direito tenho de revelar o meu sofrimento quando ele é inútil e tão pequeno perto do sofrimento da minha amiga? Que direito tenho de dizer que compartilho a dor se não sou eu quem beija aquele rostinho todos os dias? E ainda, de que adiantaria drenar minhas tristezas para um texto quando o que se necessita é de conforto e otimismo?
                 
Resolvi, por tempo indeterminado, que não escreveria nada e que se dane se tanta emoção guardada me seja insuportável. Mas hoje achei um motivo para vir aqui e contar, mesmo que não contando, a história da minha amiguinha bailarina.  
                 
Durante o longo tratamento muitas e muitas transfusões foram necessárias.  A cada uma delas sempre vem o afago de um hemograma cheio de números e de duas bochechas rosadas. Mais do que para quem acompanha, é o corpinho dela que, a cada ml de sangue, se sente otimista na luta pela cura. 

Contudo, apesar dos maravilhosos recursos do hospital Albert Einstein, em São Paulo, falta sangue. E falta sangue porque faltam doadores.
                 
A consciência dessa falta é que me permitiu escrever essa emoção, a tanto tempo engasgada, porque agora, pela primeira vez, sinto que posso ser útil – pelo menos um pouco. Mesmo que não seja no Einstein, mesmo que não seja em São Paulo... existe alguém que precisa do seu sangue agora, neste instante. 

Doar sangue é fácil, é seguro, é rápido e, mais importante que tudo isso, é necessário.



(doações em nome de Sofia)